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O Chão da Terra – capítulo I

Por Serta
05/04/2020 | 04h:00

JADISON

“Sou Jadison. Jovem guerreiro que luta pelos seus objetivos. Também gosto de fazer novas amizades e ajudar os outros quando precisam. Como qualquer ser humano, brinco e, converso muito, mas também estudo, isso porque quero progredir futuramente. Tenho muitos medos e um deles é o de assumir compromisso e não aguentar as responsabilidades. Esse é o meu maior desafio. Tenho a arte e a cultura do meu município nas veias, por isso, quero resgatá-las.”

Alguns já haviam se acomodado nas poltronas do ônibus. Esta era a terceira parada. Um primeiro degrau, o segundo e mais um. A visão que tinha agora era de um profundo corredor cheio de gente. Os olhos de quem assistia pareciam acompanhar cada passo dado por Jadison à procura de um lugar para sentar-se. As pernas pareciam não se sustentar. Ficavam bambas. A luz apagava nos rostos de quem ele vê. Foi até o último banco, na traseira do transporte. Acomodou-se como pode, enquanto esperava a partida.

Àquela hora já havia muita gente trafegando na pista. Pela janela do ônibus, Jadison acompanhava o vai-e-vem de caminhões carregados de cana-de-açúcar, Kombis com passageiros, trabalhadores rurais nas bicicletas. O dia já era tarde para ele que acordou às 4h30 para apanhar capim e alimentar o bezerro. Dentro do ônibus, um zum-zum-zum tomava conta. Várias expressões, risos, falações e brincadeiras dos jovens que o lotavam. Jadison permanecia quieto, apenas observava. Manteve seu silêncio. Pele negra, cabelos crespos, expressão forte no olhar. É um típico jovem rural da Zona da Mata pernambucana.

Todos estavam a caminho do SERTA (Serviço de Tecnologia Alternativa), uma ONG recém instalada no município de Glória do Goitá, que se propunha a formar jovens, educadores e produtores familiares para atuarem na transformação das suas circunstâncias e na promoção do desenvolvimento sustentável do campo. A ONG passaria a desenvolver atividades sociais com jovens do território da Bacia do Goitá. Esse território do estado de Pernambuco é formado por esse e mais três pequenos municípios banhados pelo Rio Goitá: Pombos, Feira Nova e Lagoa de Itaenga. Neste último é onde mora Jadison, ou “Dindinha”, como é chamado pelos amigos.

O município de Lagoa de Itaenga possui pouco mais de 20 mil habitantes (IBGE/2010). Uma única avenida divide a cidade em ruas que se ramificam em pequenas comunidades com nomes sugestivos, que despertam sentimentos: Vila da Boa Esperança, Matadouro, Saudade, Salina, Nova Itaenga, Glória. Grande parte das terras é destinada ao plantio da cana-de-açúcar. As casas são humildes. Algumas se destacam pelas cores no meio de tantas outras e por serem de primeiro andar. No centro da cidade, uma estátua de São Sebastião se volta para a igreja Católica. Os Portugueses deram significado e origem a esta terra, dos canaviais.

O motor é desligado. Todos começam a descer do ônibus, seguindo em direção as salas do prédio. Jadison observa o lugar diferente aonde veio parar. São dois prédios de primeiro andar. Algumas salas estão abandonadas, repletas de entulhos, maribondos circulando pelas janelas de vidro entreabertas. Nos arredores, o verde quebrava o cenário de seca e monocultura da cana-de-açúcar presente no lugar onde o jovem reside.

Uma moça elegante convidou todos que estavam distraídos no corredor para entrarem na sala e, assim, dar início às atividades de seleção para os Agentes de Desenvolvimento da Arte e Cultura – ADACs da ONG.

O projeto ADAC faz parte de uma das ações da formação de adolescentes e jovens do SERTA, o qual mobilizou centenas de interessados. A oportunidade surgiu com a chegada do programa Aliança com o Adolescente pelo Desenvolvimento Sustentável no Nordeste, em 1999, uma iniciativa do Instituto Ayrton Senna, da Fundação Odebrecht, Fundação Kellogg e da área social do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES). O projeto Aliança com o Adolescente se propusera a enfrentar o ciclo de pobreza no Nordeste, com o objetivo maior de contribuir para o desenvolvimento local, focalizando a educação e buscando influenciar na formulação de políticas públicas para a juventude e desenvolvimento local. A novidade foi o grande “bum” na região. A concorrência para fazer parte deste projeto tornou-se bem disputada.

– Bom dia. Meu nome é Jadilson Severino do Nascimento, tenho 17 anos, sou de Lagoa de Itaenga e vim aqui pra aprender, né? – disse baixinho para a psicóloga, com boca trêmula, partindo as palavras.

Apresentou-se como Jadilson, mas, na verdade, nunca fora assim por Lei. Sempre escutou seus pais o chamarem assim. Nunca imaginou que por engano. Certa vez, uma professora da escola, insistiu em dizer que seu nome não era Jadilson, e sim Jadison. A teimosia dele foi tamanha a ponto de conferir no registro de nascimento sua verdadeira identidade. De fato, o nome correto foi visto pela primeira vez, aos 17 anos de idade.

Sem motivação coerente, veio em direção a Jadison uma moça de pele negra, cabelos curtos e estirados, olhos negros. Deu-lhe um abraço.

– Sou sua amiga. – disse ela. – Me chamo Maria da Paz, mas pode me chamar de Zezé. – acrescentou. Jadison sentiu-se confortável com o abraço dado pela moça e ao mesmo tempo surpreso pela atitude.

A atividade de seleção prosseguiu. Todos se relacionavam como podiam. Participaram das dinâmicas de grupo, expuseram opiniões, se mostraram. Timidamente, Jadison apenas observava como as pessoas interagiam e se expressavam com facilidade. Maria é uma das mais espontâneas. A desenvoltura dela chamou atenção de Jadison, que por hora se recolhe, experimentando um sentimento de exclusão. O que tinha era medo de abrir a boca e não atender suas expectativas e as do grupo. A facilidade que imaginava ter de se relacionar com as pessoas não funcionou. Nos bastidores, fora da presença do grande grupo, finalmente pode conhecer outras pessoas, se sentindo mais à vontade.

No fim da manhã, voltou para casa. Depois de um tempo recebeu a notícia de que foi selecionado para participar do curso que tanto queria. Maria também passou. Juntos vivenciaram a formação que perdurou dois anos.

Na formação de ADAC, Jadison e integrantes do curso, comprometeram-se em pesquisar sobre a cultura local e participação da comunidade, especialmente dos jovens, nesses espaços. O resultado da pesquisa apontou que nos municípios havia histórias que expressavam os costumes, as lendas, manifestações culturais e expressões simples, oriundas da simplicidade do povo nordestino. Tudo isso trouxe pistas para a construção de um modelo de desenvolvimento sustentável justo e participativo, o qual era o objetivo maior do projeto.

Nos últimos meses de sua formação, Jadison notou, na parede, um pequeno comunicado numa folha de papel sulfite que dizia estarem abertas inscrições para a criação de um grupo de teatro. A inscrição era para jovens de 16 a 25 anos, que residissem nos municípios do território da Bacia do Goitá. O prazo era curto. Pegou a ficha de inscrição e ali mesmo, pôs-se a preencher. Maria fez o mesmo.

Jadison foi para sua casa, no sítio Imbé, a cinco quilômetros do centro de Lagoa de Itaenga. Fez sua trajetória diária percorrendo caminhos de poeira, cercado pelo canavial. A terra é avermelhada. Durante o percurso, encruzilhadas de vias fazem a distinção de quem segue. Umas são largas, outras mais estreitas.

Casas equidistantes. Dezessete, no total. É fácil identificar onde tem morador. É que apenas nos arredores das casas o verde se faz em todos os tons. Mangueiras, goiabeiras, jaqueiras, coqueiros, palmeiras, cajueiros, roseiras e roçados de feijão, milho, batata doce, macaxeira, quiabo e hortaliças identificam que ali mora gente. A poucos metros das casas, um manto esverdeado contorna as pequenas elevações de terra, que se estendem num horizonte de cana-de-açúcar. De lá, dá para se ver a cidade, com alguns sinais de prédios e torres. À noite, o horizonte se faz cheio de luzes.
No seu lar, a luz do candeeiro e luminárias movidas a querosene dá a noite um tom especial. O céu mostra-se com mais intensidade. As estrelas se multiplicam e preenchem a escuridão de pontilhados bucólicos. A lua é a tocha fosca que ilumina o terreiro da casa.

Na brisa fria, aos chamados da mãe, Jadison acordou. São quatro e meia da madrugada. O serviço de hoje é o mesmo de ontem, e que se repetia diariamente: capinar, alimentar o boi, ajudar o pai na renda, através do corte de cana. Escovou os dentes no terreiro com uma pequena lata d’água. Vestiu a calça cumprida e camiseta de brim. Pôs a botina, pegou as luvas, o chapéu de palha e sua única ferramenta de trabalho: a foice. Dona Josefa Onecina, sua mãe, entregou-lhe a marmita que havia preparado e um garrafão de dois litros d’água. Com isso, ele seguiu caminho afora, em direção aos canaviais, acompanhado por seu pai, Severino Pereira.

O sol parecia estar mais perto da terra. A sensação térmica ultrapassava os limites do corpo. A cada foiçada dada no tronco da cana, uma gota de suor do âmago brotava sobre as veias. A meta de Jadison era cortar acima de uma conta. Uma conta equivale a uma tonelada de cana, o que corresponde a cem fechos, contendo dez quilos cada. Na tentativa de enganar o Cabo – homem de confiança responsável por fiscalizar e contabilizar o trabalho dos cortadores –, Jadison introduzia lotes menores de cana por debaixo de outros maiores. Assim poderia acelerar sua produção e cumprir a meta.

O sol encontrava-se na perpendicular. Foi hora de uma pequena pausa para o almoço. Sob abrigo da sombra, inventada com palhas da cana, Jadison, seu pai e os demais homens se alimentaram. O cardápio costumava ser cuscuz acompanhado de charque ou ovos. Às vezes a mistura era banana ou manga. O alimento tinha de ser suficiente para duas refeições. Uma pela manhã, outra à tarde. Alimentou-se e voltou ao trabalho.

No fim da tarde, Jadison e Severino seguiram caminho de volta para casa. As mãos continham a marca do dia. Traços ásperos na pele escurecida. Braços molengos sobre o corpo.

Não podia ter tanto descanso, pois devia ir à escola. Já era quase seis da tarde. Jadison tomou banho de cuia com água do poço. Pôs à farda da escola nas cores azul com detalhes brancos, pegou o caderno, pediu a benção aos pais e saiu de casa em direção à parada do ônibus, que fica cerca de trezentos metros de sua casa. Pouco mais de dez minutos e já se encontrava no meio dos colegas de classe, do segundo ano do Ensino Médio. Quem apareceu foi a diretora da escola para lhe oferecer o que comer.

“Quase todas as noites ela pagava meu lanche. Já sabia que eu não jantava quando vinha à escola.”

A aula terminou. Foi hora de voltar para casa. O ônibus deixou no mesmo lugar que apanhou. Dona Josefa abriu a porta, que se divide em duas partes. O ferrolho foi empurrado. Jadison foi para o quarto. Um pano substituía a porta do minúsculo cômodo do chão de cimento batido. Uma cama, um mosquiteiro pregado na madeira de sustentação do telhado. Deitado sob ela dava para ver, pelo espaço entre as telhas, a luz da lua. Os olhos fixavam-se naquela luz e os pensamentos se perdiam. O corpo é um enfado só. Os olhos se fecharam. Fim do dia.

“… Um Nordeste oleoso onde a noite de lua cheia parece escorrer um óleo gordo das coisas e das pessoas. Da terra. Do cabelo preto das mulatas e das caboclas. Das árvores lambuzadas de resina. Das águas… O Nordeste do massapé, da argila, do humos gorduroso… da terra pegajenta e melada… que se deixa marcar até pelo pé do menino…” Gilberto Freyre, Op. cit.

[ O senhor de engenho era um empresário nativo. Ele vivia na casa grande construída para durar e passar a seus herdeiros. O poder do senhor de engenho, dentro do seu domínio, se estendia à sociedade inteira. Tinham privilégios, honrarias da Coroa. A cana gerava altas rendas para Portugal. O senhor de engenho tinha uma autoridade que a própria nobreza jamais tivera no reino. Diante dele se curvavam, submissos, o clero e a administração reinol, integrados todos num sistema único que reagia a ordem econômica, política, religiosa e moral… Frente a ela só a camada parasitária de armadores e comerciantes exportadores de açúcar e importadores de escravos – que era também quem financiava os senhores de engenho – guardava certa precedência.] Darcy Ribeiro, op. cit.

Além de pai e mãe, Jadison morava com um irmão mais velho e outras três irmãs. O irmão acompanhava o mesmo ritmo que Jadison. As irmãs cuidavam da casa junto com dona Josefa. A mais velha passou a trabalhar como doméstica no Recife. Com o dinheiro que ganhava podia ajudar a família em algumas despesas. Não eram tantas. Ao menos não tinham gastos com energia, nem abastecimento d’água, já que não possuíam o serviço. O dinheiro que se juntava de um e de outro dava para comprar o que consideravam necessário: feijão e arroz. Roupas novas apareciam apenas no fim do ano, estreadas no Natal e Ano Novo e aproveitadas para a festa de São Sebastião – padroeiro da cidade. Reaproveitadas também para o mês de Santana, dos festejos juninos. E sempre reutilizadas nas ocasiões festivas.

Com o pequeno cultivo da agricultura familiar, dava para colher alguns alimentos que complementavam a alimentação da casa. A mandioca plantada no quintal virava farinha. O processo de fabricação é caseiro. A família toda se mobilizava para poder produzir. Arrancavam-se várias. O burro ajudava a transportar a carga até a casa de farinha que pertence a um senhor de engenho, dono de todas as terras e casas da comunidade. Uma trajetória sem fim dos moradores que nunca tiveram uma casa própria. Sem ter subsídios para conquistar o seu espaço, preferiam servir ao senhor do engenho, dono da vida dos próprios moradores. Todos ajudavam na raspagem. O balaio encontrava-se cheio. A matéria prima vai à prensa. Logo posta ao forno à lenha. Agora cozinhada e peneirada. Pronta, alimentaria a família por algumas semanas.

Assim foi durante muito tempo. Um ofício permanente: canavial, casa, escola. Ora apanhar capim para o bezerro, ora fazer plantios, capinar, pastorar as cabras da família. O ofício somente foi adaptado quando recebeu a notícia de que havia sido selecionado para participar do curso de teatro, livrando-se, assim, do corte da cana. Sentiu uma alegria indescritível em poder voltar a estudar no SERTA, e expressar livremente seus quereres.

O curso reuniu dezesseis pessoas de todo o território da Bacia do Goitá. Grande parte do elenco foi composta por jovens do município de Lagoa de Itaenga: Cícero Silva, Cleiton Martins, Eber Oliveira, Franciele, Henrique Lee, Joseane Maria, Natália Andrade, Fábio Júnior, Jadison Severino, Dagner Meireles, Simone Santos e Maria da Paz. Do município de Feira Nova: Michel Lacerda e Alexsandra. Do município de Glória do Goitá: Adriana Freitas, Márcia Nazário e Joelma Sena.

Os jovens arte-educadores do CRIA (Centro de Referência Integral de Adolescentes), Luiz Eugênio e Cássia Lima, eram responsáveis pela direção cênica do espetáculo juntamente com Andréia Viviane, orientadora reconhecida na região, que acompanhava todo o trabalho. O CRIA é uma ONG que desenvolve atividades de arte-educação e cidadania, atua na formação de crianças e adolescentes em Salvador. É a instituição criada pela atriz e dramaturga Maria Eugênia Milet, que estava coordenando este projeto de teatro no SERTA, também muito próxima do grupo de jovens.

A proposta do projeto era a de que se construísse um espetáculo de teatro que retratasse a realidade dos moradores desta região, levando em consideração os personagens locais, as principais tradições culturais e que questionasse a sociedade e as autoridades sobre as problemáticas sociais enfrentadas pela grande maioria da população.

Para construir o espetáculo que mostrasse toda essa história, os participantes do curso de teatro fizeram várias oficinas. Aprenderam a confeccionar máscaras de papel maché com Sivonaldo, um antigo mestre dos Papangus de Bezerros, a fazer bonecos de mamulengo e manipulá-los com o mestre Zé Lopes. Também tiveram sessões de fonoaudiologia, aulas de percussão, danças tradicionais de Pernambuco com Andréia, como a ciranda, o coco, maracatu de baque solto e o caboclinho.

Através dessa preparação, o grupo passou a conhecer a cultura popular existente no Estado, seu contexto histórico e a relação com o povo da terra. Foi daí que Jadison resolveu legitimar a sua paixão pelo Maracatu. Desde criança, em tempos de carnaval, seus pais o levavam para assistir ao desfile dos personagens do maracatu rural, o colorido dos caboclos de lança com suas vestes cintilantes, em especial as indumentárias das baianas, era o seu fascínio.

Um gosto rejeitado pela família de Jadison, que entendia a manifestação como “coisa diabólica”. Podia ser visto, mas não praticado. Sabendo muito sobre o assunto, ele passou a se aprofundar melhor na relação dos personagens, a religiosidade e os significados. Ingressou em um maracatu de sua cidade, onde se vestia como baiana no maracatu rural. Também passou a frequentar a religião do Candomblé, de origem africana, que possui relação com o cortejo do maracatu.

[Maracatu: visível vestígios dos séquitos negros que acompanhavam os reis de congos, aclamados na escravidão e nos exílios dos engenhos de açúcar, para a coroação nas igrejas e posterior batuque no adro, homenageando Nossa Senhora do Rosário. Perdida a tradição sagrada, o grupo convergiu para o canavial , conservando elementos distintos de qualquer outro cordão da espécie (em Pernambuco). ] Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1954.

Durante a etapa de montagem do espetáculo, Jadison deixou o grupo. As coisas na sua família não estavam indo bem. O dinheiro que o pai ganhava era pouco para manter a família. O irmão se tornara alcoólatra e já não conseguia contribuir na renda. As irmãs também não tinham como ajudar. A luz no fim do túnel era largar o grupo e auxiliar o pai no corte da cana.

A grande crise ameaçava a continuação do grupo que estava em pleno processo de montagem cênica. Para jovens de classe baixa, completar 16 anos de idade já é tempo de gerar renda e se sustentar. O teatro não supria essa necessidade. Muitos estavam sendo cobrados em casa pelos pais a ter que procurar emprego. As atividades de formação eram diárias, de segunda a sexta, incluindo, por vezes, os finais de semana. O tempo se tornava inconciliável com qualquer outra atividade.

Não havia vagas de trabalho nos municípios. Uma solução era migrar para o Recife ou São Paulo. Centros urbanos que sugeriam desenvolvimento e prosperidade. No grupo de teatro, outros jovens passavam pelo mesmo dilema. Eber e Franciele acabavam de desistir. Eber foi estudar na cidade do Recife, e Franciele foi trabalhar em casa de família, numa decisão irreversível.

Fábio Júnior estava vivendo o dilema de ir para São Paulo, ao encontro do seu irmão que havia partido há um tempo, a fim de solucionar os problemas financeiros de casa. Lá, poderia juntar-se a ele e tentar seu destino. A partida para outros rumos era como doença contagiosa. Os motivos eram os mesmos: falta de esperança.

Jadison voltou a ajudar o pai no corte de cana. Sentiu novamente o gosto amargo jorrando no peito. Desta vez mais valente. A dor e o sofrimento se tornaram inevitáveis. Não havia outro caminho a não ser a trilha dos canaviais. Não havia música, ginga, pessoas sorrindo, a não ser o som dos instrumentos cortantes na cana. O barulho das queimadas bem perto. A nuvem preta com tinta escura que balanceava sob o céu encarnado apagava sorrisos sem esperança, marcados com conformidade.

Na escola, os antigos companheiros de curso lhe informavam como estavam os avanços da peça, das cenas que estavam sendo montadas. Jadison escutava tudo. Voltava para casa, sem querer imaginar como seria seu dia seguinte. Pedia a Deus todas as noites que sua vida não fosse assim até o fim.

Algo foi esquecido, nessa lista de adversidades? Ah, claro! Havia ainda a sua sexualidade, jamais aceita entre as paredes antigas da família. A sexualidade era mais um problema em sua vida. A aceitação pessoal da homossexualidade já era bem vinda. Não para sua família, sobretudo pelo irmão e o pai. O diálogo nunca acontecia e Jadison manteve oculta essa opção, mas queria que os pais o notassem como ele era. Buscou tentativas de vestir roupas diferentes dos outros meninos. Eram shorts mais curtos, blusas apertadas, cabelos crescidos e estirados, e um gingado no corpo.

Solução? Alguém tinha? Em algum lugar lhe estava reservada a saída? Numa ponta da corda amarrou o pescoço. Na outra, com ajuda de uma cadeira, pôs a medir a distância da altura da cumeeira ao intervalo do seu corpo ao chão. De modo que os pés não o tocassem, que a corda fosse o único elemento que o mantivesse em contato com o teto. Feito isso, sem demoras, afastou a cadeira sem derrubá-la, e se jogou. A corda fechou-se como um zíper rasgando a pele do pescoço.

Pensou em tudo que tinha vivido até ali. Das travessuras de criança, de gente de sua família, dos amigos que tinha feito no curso de teatro. O fôlego faltava. A mente não queria funcionar. A língua se pôs para fora da boca. O coração pulsava fortemente. Já nos estertores, conseguiu novamente o apoio da cadeira. Retirou a corda do pescoço, deitou-se no chão a respirar com intervalos mínimos. Chorou desesperadamente pela covardia. Pela dor dupla que sente no corpo e na alma. Novamente pediu a Deus que não fosse assim até o fim da vida.

Se foi Deus ou não, seu clamor encontrou resposta. Com a notícia de que ele teria saído do projeto para voltar ao corte da cana, e que o grupo estaria se desestruturando, a diretoria do curso mobilizou recursos para poder contemplar todos eles com uma bolsa no valor de setenta Reais. Um dinheiro que vinha auxiliar aos jovens do projeto. Uma tentativa de combater a evasão.

Quase às quatro horas da tarde, Jadison escutou o ronco de uma moto. Era Cícero, um dos participantes do teatro, que vinha montado numa moto trazendo boas novas.

– Jadison, eu vim dar o recado pra tu voltar pro grupo que conseguiram uma bolsa de setenta Reais, pra gente. Agora é pra ir logo porque nós já estamos quase no meio da peça. – disse Cícero em tom de felicidade.

– Isso é verdade Cícero?

– Eu num tô dizendo. Vai amanhã já, visse.

Enquanto as lágrimas vinham ao rosto de Jadison, com um abraço, Cícero despediu-se, e foi embora. Jadison entrou em sua casa para poder espalhar a novidade à família. Seu pai não aprovou a ideia de ele voltar para o curso.

– Você não vai! Isso é conversa desse povo!

– É verdade pai. Eles disseram que vão dá uma bolsa por quatro meses. Eu vou amanhã e se não for verdade eu não vou mais.

Àquela noite foi de muita luz e esperança. Caso fosse verdade, Jadison não precisaria mais cortar cana e estaria perto das pessoas e das coisas que gostava de fazer. Poderia voltar a vivenciar todo aquele momento.

Noutro dia ele comprovou que tudo o que Cícero havia lhe contado era verdade. As coisas estavam melhorando em sua vida e como esteve quase um mês ausente das atividades de montagem do espetáculo, muita coisa já havia sido construída. Encaixou-se como pode nas cenas, e acompanhou o ritmo do grupo. Na oficina de Desenvolvimento Pessoal e Social, inclusa dentro do curso de teatro, temáticas como saúde, sexualidade, família, trabalho, educação, coletividade, liderança eram trabalhadas com o grupo. Em rodas de diálogo, sempre eram pautadas situações pessoais, histórias eram partilhadas. A identidade de Jadison passou a ser provocada a partir das indagações feitas a si mesmo. A partir desse pensamento crítico, começava a crer que podia enfrentar barreiras, garimpar seu espaço na sociedade.

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